Com a introdução de novas terapêuticas com efetividade relevante e custos elevados, as decisões para a alocação de recursos no setor saúde têm se tornado cada vez mais complexas. Exemplos incluem: novos agentes antivirais para o tratamento da hepatite viral crônica C, terapia-alvo para câncer de mama HER2 positivo e ipilimumabe para pacientes portadores de melanoma estádio IV.
O emprego sistematizado dos métodos da medicina baseada em evidências potencializou a avaliação da eficácia, da efetividade e da segurança dessas novas tecnologias. Somando-se a isso, os métodos da economia da saúde, principalmente os estudos de custo-efetividade e de custo-utilidade para análise de decisão em saúde, muito contribuíram para a negociação de valores e para a melhor alocação de recursos. No entanto, esses métodos possuem a limitação de não levarem em consideração, explicitamente, alguns critérios que podem ser relevantes para a tomada de decisão. Esses critérios estendem-se para além das respostas fornecidas pela medicina baseada em evidência e pelos estudos de avaliação econômica em saúde, e podem incluir assuntos tão diversos quanto: preferências dos pacientes, clamor da sociedade, percepção da gravidade da doença, necessidade de escolha entre investimentos mutuamente excludentes, metas governamentais ou objetivos de saúde estabelecidos por organizações nacionais ou supra-nacionais.
Para levar em consideração esses outros fatores relevantes a uma tomada de decisão, foram desenvolvidos os métodos das análises de decisão multi-criérios (ADMC, ou MCDA na sigla em inglês). A ADMC pode ser definida como um conjunto de métodos de apoio à tomada de decisões em que dois ou mais critérios são considerados simultaneamente e de forma explícita. Esse tipo de análise é apropriada para questões envolvendo múltiplas decisões encadeadas (multiestratificadas) ou a participação de profissionais de múltiplas áreas (multidisciplinares). ADMC é especialmente relevante quando os diferentes pontos de vista sobre uma determinada decisão conduzem a resultados conflitantes.
Características principais de uma ADMC:
- considera a influência de dois ou mais critérios simultaneamente para uma decisão;
- considera a perspectiva de mais de uma área do conhecimento ou especialidade;
- apresenta de forma explícita os critérios sendo considerados (éticos, ambientais, sociais, econômicos, entre outros);
- possui transparência nos critérios e métodos utilizados;
- possui reprodutibilidade.
Quais são as aplicações da ADMC?
A ADMC teve seu início na década de 1960, associada ao desenvolvimento da teoria dos jogos na área da economia. Suas aplicações iniciais não foram no setor saúde, mas sim em áreas como engenharia e indústria. O ingresso da ADMC no setor saúde vem ocorrendo de forma gradual e intensificou-se nos últimos anos. Em 2016, a agência europeia de Medicamentos (EMEA) e o instituto internacional para pesquisa em farmacoeconomia e desfechos (ISPOR) recomendaram a ADMC para apoio à tomada de decisões em saúde, em especial para decisões de risco-benefício relacionado a medicamentos. O quadro 1 apresenta as principais indicações e exemplos:
Quadro 1 – Tipos de decisões para as quais a ADMC pode ser aplicada
Tipo de decisão | Critérios envolvidos na decisão | Exemplos de quem toma esse tipo de decisão |
Avaliação de risco-benefício (ARB) | Diferentes aspectos dos riscos e dos benefícios associados ao uso de uma intervenção em saúde | Agências reguladoras do setor saúde |
Avaliação de tecnologias em saúde (ATS) | Efetividade
Segurança Carga de doença Gravidade da doença Custo e Custo-efetividade: não há unanimidade quanto a serem usados como critérios em uma ADMC |
Organizações de avaliação de tecnologias da saúde, como o NICE no Reino Unido ou o PBAC na Austrália |
Análise de decisão de portfolio (ADP) | A probabilidade de sucesso e a lucratividade projetada de diferentes alternativas de investimentos | Indústria farmacêutica e de dispositivos para a saúde |
Padronização de priorização por contexto | Efetividade
Necessidades ainda não atendidas Equidade Metas governamentais |
Gestores locais do orçamento em saúde
Planos de saúde privados |
Tomada de decisão compartilhada (TDC) | Efeito na expectativa de vida
Qualidade de vida Efeitos colaterais Processo de atendimento |
Médicos e pacientes discutindo conjuntamente alternativas terapêuticas |
Priorização do acesso dos pacientes aos cuidados em saúde | Diversas medidas das necessidades dos pacientes e sua capacidade de resultar em benefícios para os pacientes | Gestores de leitos ou de recursos do sistema de saúde, como órgãos para transplante. |
Qual a relação dos métodos de ATS com a ADMC?
Existe alguma sobreposição de métodos entre as ADMC e as ATS. A ADMC é mais abrangente do que as ATS, podendo inclusive conter estudos de ATS entre seus critérios para a tomada de decisão.
Embora a análise de decisão multi-critério esteja evoluindo no desenvolvimento e na consolidação de métodos e softwares próprios para a sua realização (saiba mais aqui: link1, link2, link3), atualmente esse tipo de estudo consiste na elaboração de um relatório que apresenta, simultaneamente e de forma comparativa (comparação de pesos relativos), os resultados de estudos realizados com métodos já consagrados na ATS e MBE. Tais estudos incluem: revisões sistemáticas de efetividade e segurança, bem como estudos sobre preferências dos pacientes.
Curiosamente, o papel dos estudos de custo-efetividade, custo-utilidade e impacto financeiro é considerado discutível nas ADMC: não é universalmente aceito que os estudos de avaliação econômica de tecnologias da saúde devam ser considerados um dos critérios considerados em uma ADMC. A não inclusão de estudos de custo-efetividade ou de custo-utilidade entre os critérios de uma ADMC seria justificada pelo risco de sobreposição com outros critérios: o critério efetividade apresenta sobreposição com custo-efetividade; o mesmo poderia ocorrer com relação aos estudos de custos ou de qualidade de vida.
Métodos para executar uma ADMC
Como toda técnica de surgimento recente, a ADMC ainda está em fase de maturação e consolidação metodológica. Não existe um método universalmente aceito para se realizar esse tipo de estudo. Alguns autores propõe o uso de algoritmos sofisticados para a análise de decisão para identificar as melhores alternativas, enquanto outros propõe apenas o uso da estrutura de um relatório que torne explícitos os critérios usados na deliberação e seleção de uma alternativa.
Em linhas gerais, o processo é composto de 4 etapas (veja em detalhes no quadro 2):
- Estruturação do problema
- Captura de evidências
- Modelagem ADMC
- Deliberação
Veja abaixo as características de cada uma dessas etapas:
- Estruturação do problema
Na estruturação do problema, realiza-se o levantamento das seguintes informações relevantes:
- quantas e quais são as alternativas para a solução de um determinado problema;
- quais os problemas a serem resolvidos;
- definição de objetivos a serem atingidos;
- quais as incertezas e restrições relacionadas a cada uma das alternativas.
- Captura de Evidências
Sem dúvida essa é a etapa mais trabalhosa da realização de uma ADMC. Para cada um dos critérios definidos, deverá ser realizada uma busca de evidências válidas e com elevado grau de confiabilidade. Isso poderá incluir uma quantidade volumosa de subestudos, por exemplo:
- Para o critério efetividade: identificar ou realizar uma revisão sistemática da literatura;
- Para o critério econômico: identificar ou realizar um estudo de análise de decisão e custo-efetividade aplicável para a população-alvo;
- Para o critério preferências e prioridades da sociedade, poderão ser necessárias audiências com representantes da sociedade civil organizada ou a realização de inquéritos;
- Para o critério “priorização segundo recomendação de especialistas”, poderão ser necessários inquéritos e discussões com sociedades de especialidades ou com grupos de especialistas.
E assim sucessivamente para os diferentes critérios adotados na análise. Tende a ser uma etapa bastante laboriosa, considerando que as informações necessárias devem possuir validade externa para o contexto no qual a decisão será tomada, e isso pode requerer a realização de estudos originais.
- Modelagem para ADMC
Definidos os critérios e obtidas as evidências adequadas para embasar cada critério, é chegado o momento de integrar as informações em um modelo matemático que atribua pesos relativos a cada um dos critérios.
A atribuição de pesos é uma tarefa complexa e possui um importante componente subjetivo. Por exemplo, a atribuição de um peso muito alto para um critério menos científico, como preferências da sociedade ou de especialistas, pode deixar de lado importantes critérios técnicos, como alocação de recursos financeiros e a comprovação de efetividade. Por outro lado, a atribuição de pesos excessivamente elevados para critérios técnicos acaba por suprimir o efeito de critérios como preferências dos pacientes, ou da sociedade, praticamente correspondendo a um estudo técnico não-ADMC.
- Deliberação
Essa etapa consiste em uma interpretação crítica e contextualizada dos resultados fornecidos pelo modelo de ADMC. Também é nessa etapa que são realizadas e apresentadas análises de sensibilidade para os valores imputados aos diferentes critérios bem como para os pesos atribuídos.
Quadro 2 – Etapas na realização de uma ADMC
Etapas | Subetapas | Descrição |
1. Estruturação do problema | a) Definir o problema de decisão | Identificar: objetivos da tomada de decisão, alternativas a serem comparadas, stakeholders e tipo de respostas que se pretende obter |
b) Selecionar e estruturar os critérios a serem considerados | Identificar critérios relevantes para avaliar as alternativas | |
2. Captura de Evidências | c) Aferir o desempenho da tecnologia avaliada em cada um dos critérios | Obter informações sobre o desempenho das intervenções avaliadas em cada um dos critérios definidos e organizar essas informações em uma “matriz de desempenho” |
d) Atribuir escores de preferência dos stakeholders a cada um dos critérios utilizados | Obter estimativas das preferências dos stakeholders quando a modificações de valores dentro de cada critério | |
e) Ponderar os critérios pelo peso relativo atribuído pelos stakeholders | Obter estimativas das preferências dos stakeholders entre os diferentes critérios | |
3. Modelagem ADMC | f) Calcular um escore agregado para cada alternativa | Realizar o ranqueamento das alternativas com base em escore agregado que é composto pelos escores parciais nos diferentes critérios, multiplicados pelos pesos relativos atribuídos pelos stakeholders |
g) Avaliar o grau de incertezas | Realizar análises de sensibilidade para compreender a robustez (ou fragilidade) dos achados da ADMC | |
4. Deliberação | h) Apresentar e discutir os resultados | Interpretar os resultados da ADMC, inclusive os resultados da análise de sensibilidade, e aplicar essa informação para apoio na tomada de decisão |
Note que o processo de elaboração de uma ADMC é iterativo, ou seja, frequentemente os resultados de uma das etapas levam a novos entendimentos que indicam que uma etapa anterior deva ser revista ou ajustada. Assim, a elaboração desse tipo de estudo não necessariamente ocorre na sequência descrita acima.
Uma abordagem alternativa seria a realização de uma ADMC parcial, em que se elabora uma “matriz de desempenho” (etapa 2c), que então é utilizada para apoio à tomada de decisão nas discussões entre os stakeholders, sem que a atribuição de pesos ou o ranqueamento por escores seja realizado formalmente.
Como funciona a matemática de uma ADMC?
Sob o rótulo ADMC estão elencados diferentes métodos para considerar e ponderar diversos critérios em uma decisão. Em alguns desses métodos não há matemática, apenas organização sistemática e explícita dos critérios em avaliação para discussão entre as partes interessadas.
Entretanto, na maioria dos modelos de análise de decisão por múltiplos critérios é utilizada alguma forma de soma ponderada de escores de importância relativa de cada critério. A fórmula matemática geral para calcular o valor de cada componente da decisão é a seguinte:
Onde:
Vj= valor total para a tomada de decisão
“j” = componente específico da tomada de decisão
“i” = é o número índice de início da soma dos escores ponderados dos “m”
”m” = número total de elementos a serem somados
wi = peso de importância relativa de cada um dos “i” critérios
vi = escore da função de valor parcial no critério i
xij = desfecho no critério i para o componente j
Um alerta: risco da subjetividade na ADMC
O uso da ADMC tem por objetivo introduzir maior transparência no processo decisório. Entretanto, esse método apresenta limitações importantes, como a ausência de uniformidade na forma como os diferentes analistas (representando diferentes stakeholders) podem escolher os critérios a serem considerados e atribuir-lhes peso na modelagem. Em outras palavras: a soma ponderara dos modelos de ADMC está sujeita potenciais vieses e variabilidade.
Concluindo
Os modelos de ADMC podem ser um instrumento válido e confiável para tomada de decisões sobre a relação risco-benefício de fármacos, desde que sua elaboração siga os pressupostos do modelo com rigor científico. A menos que um mínimo de padronização seja adotado, a ADMC estará sujeita a um elevado grau de subjetividade. Talvez tão elevado a ponto de influenciar sua credibilidade.
Referências
- Thokala, N. Devlin, K. Marsh, R. Baltussen, M. Boysen, Z. Kalo, T. Longrenn, F. Mussen, S. Peacoc, J. Watkins, M. IJzerman. Multiple Criteria Decision Analysis for Health Care Decision Making—An Introduction: Report 1 of the ISPOR MCDA Emerging Good Practices Task Force. Value Health, 19 (1) (2016), pp. 1–13.
- Marsh K, IJzerman M, Thokala P, Baltussen R, Boysen M, Kaló Z, Lönngren T, Mussen F, Peacock S, Watkins J, Devlin N. Multiple Criteria Decision Analysis for Health Care Decision Making-Emerging Good Practices: Report 2 of the ISPOR MCDA Emerging Good Practices Task Force. Value Health. 19(2)(2016):125-37.
- Garcia-Hernandez A. A Note on the Validity and Reliability of Multi-Criteria Decision Analysis for the Benefit–Risk Assessment of Medicines. Drug Saf. 2015;38(11):1049-57.
- Stefani SD, Araújo GTB, Lopes Jr GL, Brust L, Santos M, Ferla MS. Valor em Oncologia na era da imuno-oncologia. Elsevier 1ª edição, 2016 – Rio de Janeiro, ISBN: 9788535285109
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