No ano passado, realizamos uma série de postagens sobre o funciomento de metanálise de comparações em rede (network meta-analysis) e indiretas (clique aqui para rever as publicações). Hoje, retomamos um assunto, trazendo um exemplo da literatura que se presta muito bem para leitura crítica. Ainda que a matemática por trás de uma metanálise de comparações em rede seja bastante complexa, temos algumas situações, com redes de evidência relativamente simples, que diminuem bastante a complexidade. E, nestes casos, conseguimos facilmente prever a matemática dos resultados, os quais, infelizmente, às vezes são reportados de forma errada, mesmo em periódicos com índice de impacto razoável e processo de peer review.
Antes de vermos o artigo em questão, é importante que você tenha o conceito sobre metanálise de comparações indiretas pelo método de Bucher, o qual explicamos em postagem anterior. Neste tipo de análise, quando temos a comparação entre dois tratamentos que não foram comparados diretamente, mas sim testados contra um comparador em comum, o risco relativo (ou odds ratio) da comparação indireta entre estes dois tratamentos é simplesmente a divisão destes riscos relativos. Ou seja, se o risco relativo de Droga A vs placebo foi 0,6, e de Droga B vs placebo foi 0,8, o risco relativo entre as duas drogas será de 0,6/0,8 = 0,75.
Outro conceito importante para termos é sobre a correlação entre o método de Bucher e os métodos para redes maiores, como o mixed treatment comparisons (MTC), que é o tipo mais comum de metanálise em rede atualmente. A figura no início deste post é um tipo de rede que chamamos de “estrela”, onde temos um tratamento central (no caso o placebo) e todos os outros tratamentos se ligam apenas a ele. Temos uma pequena parte da rede no topo da figura que tem mais algumas ligações, mas, todas as demais drogas (desde a lacosamida até zonisamida, em sentido horário) foram comparadas apenas ao placebo. Quando isto acontece, o emprego de métodos de comparações múltiplas, como o MTC, tem resultados muito próximos ou idênticos ao método de Bucher, pois a única fonte de evidência é a comparação de cada tratamento com um único comparador comum, sem outros “pedaços” de evidência indireta. Este pressuposto já foi testado formalmente em um estudo, cuja tabela principal encontra-se abaixo:
A rede de evidências neste estudo era do tipo estrela, isto é, cada um dos 4 tratamentos (atorvastatina, fluvastatina, pravastatina e lovastatina) tinha sido comparada apenas com placebo, sem nenhuma comparação direta entre os mesmos. Deste modo, o esperado era que o resultado do mixed treatment comparison fosse muito próximo ao método de Bucher (o adjusted indirect comparison da tabela), e é isto que estamos vendo: os resultados são praticamente idênticos, exceto o da lovastatina, mas que também é bastante semelhante.
Pois bem, de posse desses dois conhecimentos, podemos fazer avaliações críticas dos resultados encontrados em metanálises do tipo mixed treatment comparisons que tenham redes em formato “estrela”. Vamos analisar o artigo de Bodalia e col., cuja rede de evidências é justamente a figura que ilustra este post, acima. O artigo comparou diversas medicações antiepiléticas, e, além dos resultados das comparações indiretas entre os tratamentos, também foram mostrados os dados contra placebo, o que nos permite fazermos os cálculos nós mesmos e verificarmos se o artigo apresenta números corretos. Na tabela abaixo, temos as comparações de algumas drogas versus placebo:
Pois bem, na eficácia em redução de crises convulsivas, temos que o odds ratio de sucesso, na comparação com placebo, foi de 6,37 no topiramato e 2,13 na lacosamida. Se dividirmos um odds ratio pelo outro, temos que a comparação entre topiramato e lacosamida deveria produzir um odds ratio de 2,99 pelo método de Bucher. O artigo em questão usou mixed treatment comparison, mas, como vimos acima, os resultados deveriam ser muito próximos do que teríamos pelo método de Bucher. Porém, o resultado encontrado foi completamente diferente: OR = 0,67! Não sabemos o que aconteceu de errado nos cálculos do autor, mas uma coisa podemos afirmar: está errado! Infelizmente, os revisores e editores do periódico não se deram conta deste erro grosseiro. Mas agora você, com estes conhecimentos, pode detectar quando um erro deste tipo acontecer.
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