Desinvestimento e reinvestimento: a alocação eficiente de recursos em saúde não passa apenas por decisões sobre incorporação

O conceito de desinvestimento (disinvestment) em saúde é relativamente novo, sendo foco de publicações basicamente dos últimos 10 anos. Ao fazer uma busca hoje pelo termo disinvestment no Pubmed, sem uso de nenhuma limitação na busca, o resultado é de apenas 133 artigos. Na América Latina, as experiências são raras e sem um processo adequadamente estruturado até o momento, conforme aponta revisão sistemática recente (Agirrezabal et al.). Neste mês, o Ministério da Saúde colocou em consulta pública a sua recém terminada Diretriz Metodológica: Avaliação de Desempenho de Tecnologias em Saúde – Desinvestimento e Reinvestimento. No texto abaixo, traçamos um panorama geral sobre o tema, e apontamos pontos que necessitam de aprofundamento no futuro.

Primeiramente, é importante definirmos o termo desinvestimento. Segundo Elshaug, ele denota o processo de, parcialmente ou completamente, retirar recursos financeiros em saúde de alguma medicação, prática, procedimento ou outro tipo de tecnologia, a(o) qual esteja associada(o) a um ganho em saúde muito pequeno (ou eventualmente nenhum) considerando o que está sendo investido, desta forma não representando uma alocação eficiente de recursos. Levando-se em consideração que o termo usado de forma isolada pode sugerir que o objetivo final deste processo é diminuir o aporte de recursos em saúde, ele é comumente utilizado junto com a palavra reinvestimento, deste modo apontando que eventuais recursos retirados de uma tecnologia pouco eficiente serão realocados para outra mais eficiente (a qual não será, necessariamente, utilizada para a mesma condições clínica).

O foco é, portanto, assim como o da Avaliação em Tecnologias em Saúde (ATS) em geral,  o de alocação eficiente de recursos em saúde. De certo modo, poderíamos dizer que ele é um processo complementar à ATS mais tradicional (isto é, a que foca em incorporação de tecnologias), porém fundamental: especialmente considerando cenários de orçamentos limitados, é indispensável que sejam identificadas fontes de recursos para que sejam aplicadas em novas tecnologias que tenham sido consideradas custo-efetivas – e a análise de desinvestimento pode justamente apontar para locais de onde podem ser deslocados tais recursos. Deste modo, o processo é peça chave para garantir a sustentabilidade de sistemas de saúde no longo prazo.

O desinvestimento não significa, necessariamente, o abandono total de uma tecnologia. Na verdade, o termo pode significar quatro modalidades diferentes:

  • Restrição: a tecnologia passa a ser restrita apenas a algum subgrupo de pacientes, onde realmente tem benefício estabelecido;
  • Retração: a tecnologia passa a ser oferecida de forma menos frequente aos usuários (por exemplo, aumentar o intervalo de realização de mamografias de um para dois anos);
  • Desincorporação: a tecnologia é retirada do sistema de saúde;
  • Substituição: é a complementação do processo acima já acoplada à incorporação da tecnologia que será utilizada no lugar da que está sendo retirada.

Os critérios para desinvestimento incluem alguns um tanto óbvios, como tecnologias com evidência de dano, ineficiência e obsolência (o que usualmente indica desincorporação). O critério de uso excessivo aponta para a necessidade de retração, ao passo que uso inadequado (por exemplo, em um subgrupo de menor gravidade, onde a tecnologia não tenha tido efetividade comprovada) indica necessidade de restrição. Outro critério usualmente citado (inclusive na diretriz brasileira) é o de custo-efetividade. Porém, exceto em situações óbvias (dominância de uma tecnologia sobre outra), não há um direcionamento claro. Imaginemos que um novo fármaco para determinada doença, que pode substituir o fármaco mais antigo, mostra uma relação de custo-efetividade incremental de R$ 5.000 por QALY, sendo decidido então pela sua incorporação no sistema. Isto deveria automaticamente desencadear a desincorporação do fármaco mais antigo? A resposta certamente não é óbvia e seria objeto de debate.

Um termo que é frequentemente associado ao processo de desinvestimento e reinvestimento é o de Avaliação de Desempenho de Tecnologias em Saúde (AdTS), o qual inclusive está no título da diretriz brasileira. Ele denota a avaliação da tecnologia após a incorporação, utilizando informações de efetividade, segurança, logística e aceitação advindos da utilização da tecnologia na prática, naquele sistema de saúde – configurando-se portanto, na utilização de informações de mundo real / real world evidence (RWE). Porém, conforme comentamos anteriormente em nossa postagem sobre RWE, este tipo de evidência apresenta limitações, e quando seus resultados não são totalmente congruentes com os gerados em ensaios clínicos, não podemos automaticamente concluir que os ensaios clínicos são os que mostram estimativas equivocadas. Certamente este é mais um ponto de debate na temática de desinvestimento, que necessitará de aprofundamento futuro.

Por último, é importante observarmos desafios adicionais do desinvestimento:

  • Mesmo com a aplicação dos recursos financeiros oriundos de desinvestimento em outras tecnologias, o processo pode ter rejeição pela sociedade e profissionais de saúde;
  • Considerando a imensa quantidade de tecnologias já incorporadas, a escolha de quais tecnologias deveriam ser candidatas a desinvestimento – portanto sendo alvo de AdTS – é algo extremamente desafiador.

Em conclusão, o processo de desinvestimento e reinvestimento é um pilar fundamental na sustentabilidade de sistemas de saúde, devendo tornar-se prática cada vez mais comum no futuro. No momento, as metodologias não estão totalmente definidas, sendo um tema que certamente ainda terá grande crescimento na literatura biomédica, seja com proposição de métodos ou com relatos de experiências locais.

 

 

Agirrezabal I, Latchford J, Gutiérrez-Ibarluzea I. Disinvestment Initiatives in Latin American Countries (Lac): a Systematic Literature Review (Slr). Value Health. 2015 Nov;18(7):A856. doi: 10.1016/j.jval.2015.09.463. Epub 2015 Oct 20.

Elshaug AG, Hiller JE, Tunis SR, Moss JR. Challenges in Australian policy processes for disinvestment from existing, ineffective health care practices. Aust New Zealand Health Policy 2007;4:23.

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